Neste próximo 20 de
setembro, tão cantado e decantado em prosa e verso pelos amantes do
tradicionalismo gaúcho, estaremos comemorando 182 anos do início da Revolução
Farroupilha. Dois meses mais, e teremos exatos 173 anos do polêmico episódio do
morticínio dos Lanceiros Negros em Porongos, episódio este, nódoa em nossa
história, que os tradicionalistas preferem, pela polêmica gerada, “deixar de
lado”.
Tenho de ter muito cuidado
em escrever sobre esses dois temas, principalmente Porongos, pois tem havido um
mar de teses desconstruindo tudo e todos relacionados à nossa história. Há
gente, extremamente de mal com a vida ou, pior ainda, por questões meramente
ideológicas, useira no cometimento de teses rasteiras e parcamente objetivas
sobre o assunto. Há casos mais gerais (Dom Pedro I, de herói da independência
passa a um reles alcoviteiro; o nosso Bento Gonçalves, de herói farroupilha
torna-se mero ladrão de cavalos; o grande Duque de Caxias, de líder vencedor da
guerra do Paraguai passa a um cruel genocida) em que a lógica destruidora dos
nossos heróis beira à misantropia. Quero deixar claro aqui que em absoluto sou
contra estudos – sérios – que revisem e retifiquem a história oficial. Sou
contra o exagero, a irresponsabilidade, o achismo, só.
A Revolução de 35, a nossa
Revolução Farroupilha, é a mais importante na história brasileira, pois foi a
que mais próximo chegou a uma secessão no sólido império brasileiro, a que se
espraiou até a vizinha Santa Catarina, gerando a efêmera República Juliana. Há
também a questão da duração, 10 anos de briga intestina, não é fácil! Tem ainda
o fato (por muitos do resto do país escamoteado) de que o Ditador Argentino, o
Rosas, estava pronto para liderar, junto com o Uruguai e a nossa República
Rio-grandense, a construção de um novo gigante meridional. Portanto, mesmo que
no resto do Brasil se brinque que a “revolução farroupilha foi uma guerra que
perdemos, negociamos por empate e festejamos como vitoriosos”, nossos líderes
mantiveram-se firmes e acabaram negociando uma paz JUSTA! Pra mim, somos
vencedores e carece festejar, muito!
A Corte Imperial tinha
medo que os rio-grandenses se unissem aos platinos e formassem um estado forte e
ameaçador ao domínio do Império no Sul da América. Portanto, mesmo à véspera de
uma muito provável derrota, negociamos e ganhamos do Império: anistia a todos os
revoltosos; integração dos oficiais rebeldes ao Exército Imperial com as suas
respectivas patentes; liberdade para os escravos que haviam participado da
guerra (cabe aqui ressaltar o triste episódio de Porongos – que detalharei abaixo);
devolução aos seus donos de todas as propriedades ocupadas ou confiscadas
durante a guerra; pagamento pelo Império das dívidas; e, por fim, a indicação
do presidente da Província pelos Farrapos. Querem mais?
Mesmo que não tenhamos sido
vencedores na questão das ideias, ou seja, no ideal de um mundo novo por aqui,com
a não intervenção do Estado na economia; com o controle do poder Executivo pelo
Legislativo para se evitar o estado absoluto; com a federação das províncias; comum a nova e moderna Constituição; pela solução da questão econômica do charque e também
do imposto sobre o sal importado,para quem –o Império Brasileiro –tinha como
hábito esmigalhar os revoltosos revolucionários (forca para os líderes,
desterro para os participantes menores), não podemos reclamar,pois foi uma boa
negociação, não concordam?
Outra questão, caros
leitores, foi uma revolução democrática, do povo? Obviamente que não. Não havia
como. Numa província com uma população de 400 mil rio-grandenses (não gaúchos:
gaúcho por esta época era um termo altamente pejorativo que nominava uma massa
de analfabetos boçais e selvagens, uma bugrada de bêbedos livres, nunca
assalariados, de saqueadores, homicidas e estupradores) com apenas 5% de
alfabetizados, uma revolução somente poderia ser feita por uma elite abonada e
intelectualizada de estancieiros.
Mesmos os críticos da revolução
concordam que os “os ideais liberais e republicanos dos farroupilhas eram
progressistas em relação à Monarquia brasileira”.
Como o Império, que era
impermeável a qualquer mudança, mínima que fosse, e além de tudo tinha o fato
de estar sendo governado por regentes, não atendia os apelos dos sulistas, foi
declarada a guerra.
Da guerra adveio a gloriosa
República de Piratini; as batalhas heroicas, as gestas épicas; a prisão e a
fuga do general Bento; a dilatação do movimento com a formação da República
Juliana na vizinha Santa Catarina; o início, a partir de 1840, das perdas de
territórios conquistados, sendo a batalha de Ponche Verde, em 1843, o último
sucesso bélico-farrapo; as inevitáveis desinteligências entre os bravos líderes;
das desinteligências, os ódios, rancores como, por exemplo, o lamentável
episódio do duelo entre o Bento e o Onofre Pires que acaba na morte do
Onofre;os anos derradeiros com a busca pela de paz via negociação com os
Imperiais; e, por fim, dez anos depois, exauridos, em 25 de fevereiro de 1845,
nos campos de Ponche Verde, com a leitura dos termos por parte de Fontoura e a
necessária anuência da maioria dos oficiais farrapos presentes, a lavratura da
Paz!
Em epílogo ao texto (talvez,
pela importância do tema, um epílogo por demais longo) o polêmico episódio de
Porongos ou – houve ou não traição?
Quantas vezes, nas quentes
tardes de desfiles farroupilha dos 20 de setembro, tenho visto alguns negros e
negras, orgulhosamente trajados, com todo o rigor que a tradição manda, a desfilarem,
sobre seus belos cavalos,pelas enfeitadas ruas da minha querida Taquari! Será,
questiono-me alhures no tempo, será que eles sabem do episódio de Porongos?
Eu li e reli inúmeros
livros, documentos, teses sobre o mesmo. Mesmo assim, não tenho opinião
formada. Existem argumentos muito bons para ambas as teses. Vou, de uma maneira
rápida, listá-los para o discernimento dos amigos leitores. Cada um que faça a
sua convicção.
A
favor da traição: a questão dos negros que lutaram pelos
farroupilhas, era um óbice à paz; os republicanos exigiam alforria para todos
e, com isso, criavam um brete às negociações com os imperiais. Para os líderes
da corte, mesmo querendo resolver logo a questão sulina, a instituição do
escravagismo continuava sendo um forte instrumento de unificação nacional, algo
imexível: mesmo injusto, mesmo moralmente errado, era a forma de manter os
“poderosos” donos de terras em paz e sintonia com o Império. É cínico, mas era
assim que funcionava. Então, com o intuito de finalizar a guerra, o taquariense
David Canabarro, mancomunado com Caxias, teria mandado, na madrugada de 14 de
novembro, desarmar todos os escravos. Afirmam alguns a existência de uma carta
de Caxias mandando o coronel Francisco Pedro de Abreu, o Pedro Moringue, atacar
o acampamento e matar os desarmados lanceiros negros e poupar somente os
brancos e índios. E assim foi feito. O Corpo de Lanceiros Negros, 600 valentes
guerreiros, desarmados, desprotegidos, foi dizimado! Convenientemente,
Canabarro e alguns altos oficiais tinham se retirado do acampamento para
resolver problemas prementes. O entrave às negociações não existia mais. Três
meses após, a paz foi assinada. Como prova da traição de Canabarro, ele foi
processado pelos Republicanos. Não deu em nada, até porque que o julgamento foi
na corte.
Contra,
não houve traição, só uma fatalidade de guerra:
Houve, isso sim, um ato isolado do louco Moringue que atacou o acampamento por
moto-próprio, na tentativa de se promover junto a Caxias. Jamais Caxias (que, a
par de ter sido um competente comandante, era um homem extremamente culto,
inteligente, amante de ciência, foi um dos promotores da instalação no Rio de
Janeiro do primeiro observatório astronômico brasileiro) daria tal ordem, e, na
condição de governador da província, era o maior interessado na paz imediata.
Havia um decreto de suspensão das armas, o armistício. As negociações pela paz
estavam muito adiantadas. O desarmamento dos Lanceiros Negros inseria-se neste contexto.
Mais duas provas irrefutáveis: o próprio Canabarro foi pego de surpresa e teve
de fugir com suas roupas de baixo da tenda da sua amante, a “papagaia”(casada
com um boticário/médico taquariense, de nome João Duarte, das tropas farrapas
conhecido por “papagaio”); ora, se soubesse do ataque jamais seria pego com as
calças na mão! A outra prova: o negociante republicano pela paz junto à Corte, o
plenipotenciário Antônio Vicente da Fontoura, estava de viagem marcada para o
Rio de Janeiro e dormiu no acampamento, tendo na fuga extraviado documentos
importantes. Não faz senso! No seu diário, escreve Fontoura: - ”Bagé, 18 de novembro de 1844. Como são
falíveis os juízos dos mortais! Minha carta de 13, e esta, bem o provam. Não
quero fazer, porém, a descrição do revés que tivemos a 14, porque o Gabriel vai
e ele que o conte. Fui feliz e tudo quanto nos pertence. Os meus possuelos
foram-se. Ficou a Lindoca sem a sua caixa de tintas e a Bindunga sem o lenço!”
Cada um julgue conforme sua
consciência. Como já adrede afirmei neste texto, eu ainda não tenho(e talvez
nunca o tenha) um juízo formado. Agora, eu negro, jamais festejaria o 20 de
setembro sem que a questão fosse aclarada. Julgo fundamental que uma comissão
de notáveis historiadores, gente com alto saber, com um mínimo de 50% de negros,
estudasse o polêmico episódio e emitisse um parecer final. A verdade absoluta, verdadeira,
até mesmo pelo tempo avançado, dificilmente será alcançada, mas, com critério,
objetividade e isenção poderemos, sim,ao menos trazê-la uma distância mais
próxima da realidade.
João Paulo Da Fontoura
Imagem: YouTube
Obrigado à querida colega do nosso Centro Literário, a Mardilê, pela postagem do texto, e mais ainda, pela bonita editoração com imagem e vinheta.
ResponderExcluirEspero, sinceramente, que os colegas o curtam e postem opiniões, pois, afinal, houve ou não traição? Vamos lá, pessoal!!!
Este texto foi publicado há uns dois anos no Blog do jornalista José Prévidi - Porto Alegre.
A partir dessa publicação, e sua repercussão, houve um contato do jornalista Manuel Soares - jornalista negro - que à época atuava no Jornal do Almoço, objetivando eu dar um depoimento no programa. Lamentavelmente acabou não dando certo, mas o importante que provocou pessoas.
Hoje, esse competente jornalista está atuando na Globo, no programa da Fátima Bernardes.