segunda-feira, 6 de maio de 2013

Os contrastes da nossa era.


 

              Elogiável a decisão do novo prefeito da capital gaúcha de retirar das ruas o imenso contingente de crianças pobres, abandonadas à própria sorte. Resta-nos, no entanto, almejar que tão nobres anseios sejam coroados de sucesso. Parece-nos, à primeira vista, um empreendimento fácil de ser realizado, mas a grande interrogação que paira ameaçadora sobre a concretização do projeto é: Será que as crianças querem sair das ruas? Acostumadas durante anos e anos a perambular pelas esquinas, estimuladas pela fome, e por pais que as empurram para mendicância, é muito difícil que dentro de suas cabecinhas brilhe o desejo de mudar de vida.

Há dias, um senhor me contou um episódio interessante. Sempre ao entardecer, quando retornava à casa, encontrava em uma sinaleira o mesmo menino, sujo e descalço, olhos grandes e negros, pedindo: - Dá um dinheirinho, tio! O homem baixava o vidro do carro, apanhava no console do carro uma moeda, previamente reservada para os pedintes, e dava ao menino. Mas seus grandes olhos negros acompanhavam o bom homem até sua residência e assombravam suas noites de sono intranquilo. No café da manhã, sentado à mesa com os filhos, olhava para eles, e pensava no garoto. Naquele momento deveria estar buscando recursos para aliviar o vazio do estômago enquanto suas crianças bebiam suco de laranja, comiam cereais, frutas, pães e outras guloseimas. Depois, todos sentariam no carro com o ar condicionado ligado, os vidros fechados, as portas bloqueadas, os cintos de segurança afivelados, e rumariam para a escola. Ao meio dia, sua esposa repetiria o ritual. Os meninos levantariam de suas cadeiras na sala de aula e se precipitariam sobre o acento do carro. Certamente, nesse mesmo instante, o garoto de olhos negros estaria saltitando ao sol entre a profusão de carros da cidade. À tarde seus filhos seriam levados à aula de inglês ou caratê, e se precisassem comprar algum material escolar a mãe providenciaria. Saírem desacompanhados para qualquer atividade, nem sonhar.  E o garoto de olhos negros continuaria saltitando sob o sol ou sob a chuva.

          Tanto pensou, tanto traçou paralelos que resolveu tomar uma decisão, forte e corajosa: Faria tudo o que pudesse para mudar o destino daquela criança. Entrou no carro, dirigiu até o lugar onde sempre encontrava a criança e acenou para ela. Depois de o garoto se aproximar, perguntou-lhe onde morava; queria falar com seus pais.

Enfim, com a licença dos genitores, trouxe o menino para sua casa, deu-lhe roupas novas, ensinou boas maneiras, matriculou-o numa escola. Deu-lhe carinho, amor e uma vida digna.

Seis meses depois o garoto desapareceu. Deixou um bilhete dizendo que sentia falta das ruas, que não conseguia suportar uma vida organizada, preferia ser pobre, mas livre.

E assim o bondoso cidadão sentiu-se num dilema. Passou a questionar a terrível realidade brasileira. A total falta de segurança no país mudara os hábitos da maioria das famílias. Seus filhos eram prisioneiros na própria casa. Há muito tempo tinham perdido o direito de ir e vir. Estavam sendo criados dependentes dos pais, sem possibilidades de liberar sua energia criativa. Não podiam andar de bicicleta na calçada, nem sequer sabiam brincar na sarjeta aproveitando as enxurradas das tardes de verão. Viviam presos numa frágil redoma de vidro, olhando televisão e brincando com computadores, e por isso talvez se tornassem  mais infelizes do que o garoto de olhos negros, que vivia solto nas ruas, mas preso pelos grilhões da miséria.

       Quais serão, daqui a vinte anos, os questionamentos das crianças?

Marilene Vargas

Imagem: Google

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